sexta-feira, 18 de setembro de 2009

20 anos de Brasil

Há 20 anos, às 6h30 da manhã eu desembarcava com a minha mãe em São Paulo. Não eram mais férias. Não ia apenas visitar os meus avós e rever meus primos. Tínhamos deixado para trás uma família que nos amava muito, amigos dedicados, os costumes. Eu em especial havia deixado o meu pai, a minha pátria e a certeza de uma vida tranqüila. No Equador tudo é mais tranquilo.

Já conhecia São Paulo. Ainda naquela época era a terra da garoa. Lembrava da impressão de ver ruas de paralelepípedo. Achava o máximo os taxis modelo Fusca sem o banco da frente. Aqui se brincava de pipa e soltava-se balão. O sotaque me deu amigos e problemas. Eu era muito zoado pelos demais. Queria ser motorista de ônibus elétricos.

Minha mãe havia deixado uma vida cômoda para trás. Ela se divorciara do meu pai. A família dela é do Brasil. Há quase 20 anos ela não morava em seu país. Saiu exilada em 72. Sempre sozinha, sempre guerreira. Ela é meu pai também. Era empresária, conhecida na sociedade de lá e muito querida por todos. Ajudou muita gente. Salvou a vida de alguns e amenizou a dor daqueles que moribundeavam. Sempre que eu volto para lá, me perguntam “Como está tu mami? Dile que la amamos.” Ela encontrou em minha vó paterna um porto seguro. Fez muito por ela. Se adoravam. Eram íntimas.

Mas a vida aqui era nova, então ela recomeçou. Apesar de falar espanhol, alemão, russo e ser empresária, aqui ela começou como recepcionista num consultório médico. Eu tinha 11. Me partia o coração. Sabia o que era conforto de morar em uma casona, ter carro, casa na praia acabara. Nunca me incomodei com isso. Nunca liguei. Muito menos ela. Ela e meu pai sempre me ensinaram que o que importa de verdade é o conhecimento adquirido ao longo dos anos, e a humildade. Não queria luxo. Mas não queria vê-la como recepcionista. E ela levava a vida como se não houvesse nenhum problema. Feliz por ter voltado, apesar da família ser ausente. Minha mãe era sempre risada, alegria, piadas e solidariedade.

Chegar aqui e conviver com o meu avô foi o máximo. Engraçadíssimo. Mentiroso. As histórias mais impossíveis aconteciam com ele. O velho Chamorro é o homem mais fantástico que eu conheci. Convivi com ele apenas 3 anos. Morreu de câncer. Nem o câncer o derrotou. Ele que desistiu de viver. Lembro de receber a notícia quando chegava em casa. Eu estava com o meu melhor amigo. Ao velório levamos a bandeira do PCB. Pedido da minha mãe. Ele foi um dos fundadores do sindicalismo no Brasil. Dirigente do Partido Comunista, foi presidente da confederação dos trabalhadores. Deu a sua vida para o que hoje gozamos. 13º Salário, férias etc. Cha, como era conhecido liderou a famosa greve dos 300 mil que paralisou o país. Ele só tinha estudado até a 2ª série. Teve que parar para ajudar a família. Eram espanhois bem pobres.

O velho Cha me ensinou como abordar as pessoas para tentar persuadi-las politicamente. Acho que fui o cabo eleitoral mais novo do país. A alegria da minha mãe em poder votar pela primeira vez na vida era suave. Eu queria conseguir convencer as pessoas do entusiasmo dela e do meu avô. Eu andava na rua com uma bolsa tira-colo com milhares de panfletos do Mario Covas. Passei semanas andando por toda a Mooca. Fábricas, comércio, casas, pontos de ônibus. As pessoas me atendiam e me escutavam. Algumas debatiam. Outras riam. Outras agradeciam. Mas todas se divertiam com um moleque com sotaque tentando convencê-las de que o tucano era a salvação para o país. Mas 89 foi um ano colorido.

Morávamos na casa da minha vó. Num quarto, eu, minha mãe, uma cama e 27 caixas de mudança. Me divertia. Quem não se diverte no Brasil com 11 anos de idade? O dinheiro que ela havia trazido para começar, virou nada. O Plano Collor acabou com as esperanças de comprar um apê.

Mudamos ao lado da casa dos nossos avós após um ano morando com eles. Eu já estudava num colégio. Terrível. Não entendia muita coisa, os professores não se importavam com os alunos. A educação era muito diferente. Tentei bater numa professora quando me chamou de “indiozinho de merda”. Agi corretamente. Tentei acertá-la com o caderno, e na tentativa de um segundo soco, me seguraram. Quando minha mãe foi chamada, ela nem me pediu explicações. Sai de lá aliviado. Ela me parabenizou pela atitude. Meu pai teria feito o mesmo. Aprendi a reagir na mesma medida da ignorância que me atingia.

Nesse colégio vi pela primeira vez pessoas da minha idade fumando. Conheci a cocaína e a maconha. Nunca quis experimentar. Eu era meio precoce. Sabia onde isso ia dar, e não queria estar por perto. Foi a primeira vez, de muitas outras, em que decidi me afastar de uma pessoa. Era estranho. Mas necessário. Não queria ser como elas. As drogas as deixavam idiota. Não se davam bem com as famílias. Eu sabia que esse caminho me afastaria da minha mãe.

E aos poucos me transformava em um adolescente. Descobri o rock, a cachaça e as meninas gostosas. Me divertia horrores com essa tríade. Apesar da estupidez e do perigo da bebida. Descobri porque os adultos se divertiam muito nas festas.

E com 12 anos minha vida mudou de vez. Conheci uma das pessoas mais sensacionais, inteligentes e engraçadas do mundo. Durante anos fomos unha e carne. O dia em que nos cruzamos pela primeira vez, um bêbado correu atrás de nós com uma faca. É que estávamos no fundo do prédio brincando com as duas filhas dele. Enquanto tentávamos convencer as meninas do nosso real interesse pela amizade delas, ambas perguntavam porque eu falava diferente... sem saber o que falar, ele pensou rapidamente, e disse “Ele tem uma doença. Ele precisa tomar remédio, por isso fala assim. Você não gostaria de ajudar ele um pouquinho?” E assim ele explicava que eu carregava o sotaque do Equador. Isso colaborou, e tudo caminhava como deveria, até que o pai delas viu pela janela a forma que brincávamos inocentemente. Ele gritou o nome delas, e disse para esperarmos já que iria nos matar. Claro que esperamos. Eu comecei a rir e pensar que ele não faria nada contra nós. Óbvio. Eu tinha 11 e meu amigo 13. Mas o óbvio no Brasil é um pouco diferente. Corri até ficar com a bunda dolorida. Corremos desesperadamente, e pulamos os muros para sobreviver. O que me fez fugir foi a informação minutos antes, de que ele era do Acre, e morava em São Paulo fugido de um processo por homicídio.

Eu não sabia o nome do meu breve amigo até que durante a fuga, sogrão gritava com a faca empunhada: “Vem aqui Fábio que eu vou te matar!!!”
O resto eu conto amanhã...