quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Assim.

Uma vida inteira e nada que se aproveite. As vezes queremos que as coisas sejam do nosso jeito. É como querer definir a forma de uma lágrima, a cor do vento, o sabor da história.

Depois de uma vida, o que fica, se não for divisível aos outros, não valeu a pena.
Vemos apenas o que alcançamos. Perante a luz, seres perenes. Alcançamos o que os braços suportam. Perante a distância, limitados.

O mundo é mundo. Imenso. Inatingível. Azul. Redondo. Mas se limita a dar voltas no mesmo lugar. Expresso sentido em si próprio. O sentido de ir e ser o que queremos. Apenas na perspectiva do que ainda não somos. A ilusão do próprio sentido de estar. Desisto da ação. Parto para o princípio. A essência em si. O início do querer, sem ser, sem estar.

Somos uma definição de espaço e tempo. Uma intensa vitória sobre a duração. Frequência de batidas, sobre um mundo de lembranças. E só. Para continuar felizes, acreditando que o futuro é amanhã. Assim o tempo passa fácil.
Como os que ensinam não entenderam, os que aprendem obedecem.

domingo, 27 de setembro de 2009

O começo das coisas.

Até eu conhecer o Fábio, já tinha vários amigos. Mas a diferença de idade e a distância não permitiam que vivêssemos tão presentes um na vida do outro. Sorely, Jr, Natalie, Polyana, Letícia, Paulinho. O Jr e a Natalie eram irmãos e moravam em Campinas. Passavam férias na casa da avó. O Jr era bonitão, inteligente e muito engraçado. A Natalie era amigona de verdade. Linda de morrer, as vezes era odiada pelas meninas. Passei umas férias sensacionais na casa deles. Fui atropelado na bicicleta da Natalie. O Jr e eu pegamos a empregada dele ao som de Sinned O’Connor. Ai ai. A mãe deles foi a primeira pessoa a me levar para conhecer a avenida Paulista. Rosaura. Mulher de ferro. O Paulinho era extremamente habilidoso. O cara fazia pipas aos 7 anos de idade, e aos 9 dava relo em vários marmanjos. Enfrentava qualquer pessoa sem medo. Graças a Deus, corinthiano roxo.
A Polyana era apelidada de” torneirinha”. Ela sempre chorava. O Paulo não a deixava em paz. Se divertia de vê-la aos prantos. Sempre fomos muito amigos e confidentes. A Letícia inseparável amiga da Polyana foi o meu primeiro beijo no Brasil. Foi na porta do apto da minha vó. A Sorely era a cherifa da turma. Mais velha, ela metia a mão em quem nos enchesse. Ela me cuidava como se fosse o irmão caçula. Quando vinha de férias, só descia pra brincar se ela estivesse lá. Todos considero como irmãos. Realmente me separei da turma em 99 quando fui morar em Sorocaba. Hoje olha para trás, e me dou conta que não me lembro de ter me despedido deles. Não sei se o fiz. Deve haver em mim um botão de desligar nesses casos. Sempre estive longe dos que amava.
Todos eram filhos de amigos de infância que a minha mãe deixou para trás quando saiu ao exílio. Éramos uma gangue do bloco A4 no IAPI. Quando chovia brincávamos de nos sujar na lama no famoso parquinho de lá. O objetivo era não deixar nenhuma parte do corpo sem lama. A terra era vermelha. As roupas eram jogadas no lixo. Como os pais e avós brigavam com eles, depois da camuflagem todos iam à minha casa tomar banho. Minha mãe brigava comigo. Mas brigava pouco. Ela sempre foi muito tolerante com o que eu aprontava.
Tínhamos um trato. Nunca mentir. Eu faria qualquer coisa. Mas não poderia mentir jamais. Sentia tanta confiança que eu contava tudo e aprontava tudo.
Até hoje o carinho das mães pelos filhos das outras mães é muito bonito. Todas se cuidam.

Quando comecei a andar com o Fábio conheci um outro mundo. Era só farra, ao mesmo tempo que nos tornávamos adolescentes. Sentia ter mais do que um amigo de verdade. Não pedia nada em troca. Ele dava o mundo. Estar com ele era a certeza de conseguir parar o tempo, dominar os espaços. Aprendi que as coisas ruins poderiam ser guardadas num cofre no fundo do coração. Fábio tinha a chave. Sempre a escondeu. Nunca o vi reclamar das dificuldades financeiras, das incertezas que o futuro o guardava, do processo de separação dos pais, da morte estúpida do tio. Ele era muito forte.

Aos poucos ele passou a ser praticamente a pessoa que eu usava como referência. Meu medo era se o Fábio aceitaria ou não alguma atitude minha. Aos poucos, fui conhecendo-o melhor. Ao ponto de conversarmos através dos olhares. Em menos de um ano não havia o Fábio sem Amauri, e um Amauri sem Fábio.

Além de tudo, Fábio me deu a coisa mais importante que alguém pode ter. Uma família. Completa. Pai, mãe, irmãos, primos, avós, tios e tias. Gigante. Todos unidos, e se amavam muito. Eu tinha uma assim. Mas apenas no papel. Não no coração. Todos os melhores momentos da minha vida aconteceram enquanto éramos inseparáveis. Mesmo longe, ele era presente. Falava mais com ele por carta e por telefone do que com a minha mãe ou pai.

Lembro da primeira vez em que eu fui à casa dele. Quando entrei vi o Carlo, irmão dele. Ele estava desenhando a capa de uma revista do Sandman. Carlo tem os olhos da cor do céu. Pareceu meio folgado quando me cumprimentou. Natural. Na Mooca a molecada não era muito confiável para se por em casa. Eu nunca tinha visto alguém desenhar daquela forma. Era mágico. Fiquei boquiaberto. Carlo começou a trabalhar aos 14 anos. Sabia que o dinheiro faltara em casa. Um dia sem avisar ele saiu à procura de emprego. Começou numa empresa que fazia arranjos para festas infantis. Ele sempre foi genial para trabalhos manuais. Não é a toa que agora ele é publicitário e tatuador.

Nesse primeiro dia entramos no quarto deles, e na última porta do guarda-roupas havia a maior pilha de playboys do hemisfério sul. Eu quase morri. Eu já havia descoberto os prazeres das revistas no Equador. Mas aquilo era um harém. Isadora Ribeiro se tornava minha musa.

Na mesma semana fomos para minha casa. Estávamos ele, o Paulinho, o Fernando, e outros malucos. Decidimos brincar de Gato Mia. Valia todo o apartamento. No primeiros 10 segundos de silêncio eu ouvi um estouro como se tudo viria abaixo. A estante da sala não suportou a inteligência do Fábio. Ele havia subido na prateleira do meio. Ninguém o acharia. Mas todos os enfeites que a minha mãe havia trazido do Equador, perfeitamente embalados com carinho, o denunciaram. Quando acendemos a luz ele continuava pendurado do topo da estante, falando baixinho, quase sem respirar “desculpa... pode deixar que eu arrumo tudo. Mas... alguém pode me ajudar a descer?” Tudo quebrado.

Pouco a pouco fui conhecendo o resto da família dele. Havia ainda o André, segundo irmão mais velho. André para nós era o mauricinho chato. Só agora na fase adulta entendi que ele estava certo. Sempre cheiroso, e bem vestido. Nós roubávamos os passes de metrô e os vale-transportes dele. Íamos de metrô pra um monte lugar comer no Mc Donalds. Tudo patrocinado. A mãe deles era a Márcia. Linda que só ela. Trabalhava em casa. E como. Imagina cinco homens em casa? Ela não imaginava que eu seria o quinto filho dela. Depois de um tempo a Márcia começava a me contabilizar na compra de comida. Cozinhava muito. Sempre sorridente. Lembro dela como um anjo. O Aldo, que Deus o tenha, era o típico mooquense. Italiano, malandro, engraçado, dava jeito em tudo. Entendi de onde vinha o Fábio. A cabeça da mãe, o coração do pai. Eles tinha um passarinho que se chamava Paulinha. Por último conheci o Fabrizio. Mais conhecido como Bizão. É o mais velho e esperto de todos.

A primeira vez que Carlo foi em casa, ele pegou o meu violão e começou a tocar uma música que eu nunca havia escutado antes. Ela tinha 10 minutos, e a letra era perfeita. Chamava-se Faroeste Caboclo. Não bastasse o Carlo desenhar muito, ter olhos azuis, ele cantava pra cacete. Não havia descoberto ainda que atrapalharia o Fàbio e eu nos processos de conquistas. Escondíamos algumas festinhas dele. Quando chegada arrebatava corações e a nossa diversão.

Minha mãe já havia saído daquele consultório em que trabalhava. Ela agora trabalhava no sindicato dos mestres e contra-mestres. Profissão praticamente extinta hoje. Nessa época ela ganhava muito mal. Praticamente não tínhamos dinheiro pra nada. Ela falava com a minha vó e pedia para eu ficar lá porque ela iria chegar mais tarde. Na verdade não havia comida em casa. Então se eu ficasse na vó, eu teria garantido a janta. Minha mãe durante muito tempo apenas jantava leite C com café. Ninguém sabia disso. Minha mãe começou a costurar para fora e fazer bichinhos de pelúcia para completar a renda.

Mas neste mundão existem pessoas únicas. Nós tínhamos uma vizinha que o apelido dela era Kita. Ela morava num kitnet e fazia efeites e arranjos de pano para recém nascidos, batizados etc. As duas filhas, Silmara e Sussena, eram muito carinhosas e dedicadas para com a mãe. As três nos ajudaram muito. A Kita nos dava cestas básicas, a Silmara e Susena trocavam passes por dinheiro para nos dar. Jamais esquecerei isso. Hoje coincidentemente a Kita mora em nosso primeiro apto.

Já pelo fim do ano de 90 eu iria de férias ao Equador. Mas antes, disso o Fàbio e eu descobrimos juntos algo que marcaria as nossas vidas. A música chamava Epic. A banda era o Faith No More. Alucinamos. Nos vestíamos igual ao vocalista, cortávamos o cabelo como ele. Era a nossa vida. O estrago estava feito. Na sequência o Metallica lançava o Black Album.
Até que uma vez chegamos em casa, e o Carlo com um sorriso no rosto nos disse: “Entrem no quarto que tenho uma surpresa”. Ao abrirmos a porta, havia uma bateria. Ele havia ganho do chefe. A partir daí a música começou a realmente fazer parte das nossas vidas. Naquele momento o Fábio, o Carlo e eu fundávamos uma banda. O problema é que o único instrumentista da banda era o Carlo. Eu e o Fábio não sabíamos nada. Mas e daí? Já tínhamos uma bateria...

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

20 anos de Brasil

Há 20 anos, às 6h30 da manhã eu desembarcava com a minha mãe em São Paulo. Não eram mais férias. Não ia apenas visitar os meus avós e rever meus primos. Tínhamos deixado para trás uma família que nos amava muito, amigos dedicados, os costumes. Eu em especial havia deixado o meu pai, a minha pátria e a certeza de uma vida tranqüila. No Equador tudo é mais tranquilo.

Já conhecia São Paulo. Ainda naquela época era a terra da garoa. Lembrava da impressão de ver ruas de paralelepípedo. Achava o máximo os taxis modelo Fusca sem o banco da frente. Aqui se brincava de pipa e soltava-se balão. O sotaque me deu amigos e problemas. Eu era muito zoado pelos demais. Queria ser motorista de ônibus elétricos.

Minha mãe havia deixado uma vida cômoda para trás. Ela se divorciara do meu pai. A família dela é do Brasil. Há quase 20 anos ela não morava em seu país. Saiu exilada em 72. Sempre sozinha, sempre guerreira. Ela é meu pai também. Era empresária, conhecida na sociedade de lá e muito querida por todos. Ajudou muita gente. Salvou a vida de alguns e amenizou a dor daqueles que moribundeavam. Sempre que eu volto para lá, me perguntam “Como está tu mami? Dile que la amamos.” Ela encontrou em minha vó paterna um porto seguro. Fez muito por ela. Se adoravam. Eram íntimas.

Mas a vida aqui era nova, então ela recomeçou. Apesar de falar espanhol, alemão, russo e ser empresária, aqui ela começou como recepcionista num consultório médico. Eu tinha 11. Me partia o coração. Sabia o que era conforto de morar em uma casona, ter carro, casa na praia acabara. Nunca me incomodei com isso. Nunca liguei. Muito menos ela. Ela e meu pai sempre me ensinaram que o que importa de verdade é o conhecimento adquirido ao longo dos anos, e a humildade. Não queria luxo. Mas não queria vê-la como recepcionista. E ela levava a vida como se não houvesse nenhum problema. Feliz por ter voltado, apesar da família ser ausente. Minha mãe era sempre risada, alegria, piadas e solidariedade.

Chegar aqui e conviver com o meu avô foi o máximo. Engraçadíssimo. Mentiroso. As histórias mais impossíveis aconteciam com ele. O velho Chamorro é o homem mais fantástico que eu conheci. Convivi com ele apenas 3 anos. Morreu de câncer. Nem o câncer o derrotou. Ele que desistiu de viver. Lembro de receber a notícia quando chegava em casa. Eu estava com o meu melhor amigo. Ao velório levamos a bandeira do PCB. Pedido da minha mãe. Ele foi um dos fundadores do sindicalismo no Brasil. Dirigente do Partido Comunista, foi presidente da confederação dos trabalhadores. Deu a sua vida para o que hoje gozamos. 13º Salário, férias etc. Cha, como era conhecido liderou a famosa greve dos 300 mil que paralisou o país. Ele só tinha estudado até a 2ª série. Teve que parar para ajudar a família. Eram espanhois bem pobres.

O velho Cha me ensinou como abordar as pessoas para tentar persuadi-las politicamente. Acho que fui o cabo eleitoral mais novo do país. A alegria da minha mãe em poder votar pela primeira vez na vida era suave. Eu queria conseguir convencer as pessoas do entusiasmo dela e do meu avô. Eu andava na rua com uma bolsa tira-colo com milhares de panfletos do Mario Covas. Passei semanas andando por toda a Mooca. Fábricas, comércio, casas, pontos de ônibus. As pessoas me atendiam e me escutavam. Algumas debatiam. Outras riam. Outras agradeciam. Mas todas se divertiam com um moleque com sotaque tentando convencê-las de que o tucano era a salvação para o país. Mas 89 foi um ano colorido.

Morávamos na casa da minha vó. Num quarto, eu, minha mãe, uma cama e 27 caixas de mudança. Me divertia. Quem não se diverte no Brasil com 11 anos de idade? O dinheiro que ela havia trazido para começar, virou nada. O Plano Collor acabou com as esperanças de comprar um apê.

Mudamos ao lado da casa dos nossos avós após um ano morando com eles. Eu já estudava num colégio. Terrível. Não entendia muita coisa, os professores não se importavam com os alunos. A educação era muito diferente. Tentei bater numa professora quando me chamou de “indiozinho de merda”. Agi corretamente. Tentei acertá-la com o caderno, e na tentativa de um segundo soco, me seguraram. Quando minha mãe foi chamada, ela nem me pediu explicações. Sai de lá aliviado. Ela me parabenizou pela atitude. Meu pai teria feito o mesmo. Aprendi a reagir na mesma medida da ignorância que me atingia.

Nesse colégio vi pela primeira vez pessoas da minha idade fumando. Conheci a cocaína e a maconha. Nunca quis experimentar. Eu era meio precoce. Sabia onde isso ia dar, e não queria estar por perto. Foi a primeira vez, de muitas outras, em que decidi me afastar de uma pessoa. Era estranho. Mas necessário. Não queria ser como elas. As drogas as deixavam idiota. Não se davam bem com as famílias. Eu sabia que esse caminho me afastaria da minha mãe.

E aos poucos me transformava em um adolescente. Descobri o rock, a cachaça e as meninas gostosas. Me divertia horrores com essa tríade. Apesar da estupidez e do perigo da bebida. Descobri porque os adultos se divertiam muito nas festas.

E com 12 anos minha vida mudou de vez. Conheci uma das pessoas mais sensacionais, inteligentes e engraçadas do mundo. Durante anos fomos unha e carne. O dia em que nos cruzamos pela primeira vez, um bêbado correu atrás de nós com uma faca. É que estávamos no fundo do prédio brincando com as duas filhas dele. Enquanto tentávamos convencer as meninas do nosso real interesse pela amizade delas, ambas perguntavam porque eu falava diferente... sem saber o que falar, ele pensou rapidamente, e disse “Ele tem uma doença. Ele precisa tomar remédio, por isso fala assim. Você não gostaria de ajudar ele um pouquinho?” E assim ele explicava que eu carregava o sotaque do Equador. Isso colaborou, e tudo caminhava como deveria, até que o pai delas viu pela janela a forma que brincávamos inocentemente. Ele gritou o nome delas, e disse para esperarmos já que iria nos matar. Claro que esperamos. Eu comecei a rir e pensar que ele não faria nada contra nós. Óbvio. Eu tinha 11 e meu amigo 13. Mas o óbvio no Brasil é um pouco diferente. Corri até ficar com a bunda dolorida. Corremos desesperadamente, e pulamos os muros para sobreviver. O que me fez fugir foi a informação minutos antes, de que ele era do Acre, e morava em São Paulo fugido de um processo por homicídio.

Eu não sabia o nome do meu breve amigo até que durante a fuga, sogrão gritava com a faca empunhada: “Vem aqui Fábio que eu vou te matar!!!”
O resto eu conto amanhã...